Neoliberalismo e Financeirização: os impactos na economia e geopolítica contemporânea
- Luísa da Rocha Canazarro
- 30 de abr.
- 7 min de leitura
Atualizado: há 1 dia
Primeira parte da entrevista realizada em conjunto com Leonardo Sodré Corrêa
Doutor em Economia das Instituições pela École des Hautes Études en Sciences Sociales-EHESS de Paris e Doutor em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro-IE-UFRJ. Mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense-UFF. Economista pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ. Professor e pesquisador do Programa de Mestrado e de Doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas-ENCE do IBGE, Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ e da Faculdade Presbiteriana Mackenzie-Rio, o economista Miguel Bruno falou ao Observatório de Bancos Centrais sobre os impactos das políticas econômicas neoliberais e da financeirização na economia contemporânea.

Luísa: Com a liberalização dos fluxos financeiros e de capitais nos anos 90, o Estado Brasileiro reduziu sua autonomia na condução das políticas macroeconômicas, seja no âmbito fiscal, cambial e monetário. A origem dessas mudanças é um regime econômico voltado para a acumulação financeira e o rentismo?
Prof. Miguel Bruno: Em uma perspectiva histórica, essencial para qualquer análise econômica pertinente, é preciso observar o significado do modelo de desenvolvimento no pós-Segunda Guerra Mundial nos países da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que inclui basicamente a Europa Ocidental, o Japão e os Estados Unidos. Foram 30 anos de prosperidade, com os países crescendo em torno de 5% a 6% ao ano, período conhecido como a "era de ouro do capitalismo" ou a “golden age" do capitalismo. Esse período ocorreu durante a Guerra Fria, quando o bloco ocidental competia com o bloco soviético, e era necessário demonstrar qual sistema poderia oferecer melhores condições de vida e democracia.
No entanto, esse padrão de crescimento se esgotou antes mesmo da crise da União Soviética. O que aconteceu? Aquele período só foi possível devido a uma arquitetura institucional em cada país. As economias não funcionam apenas com oferta e demanda; isso é uma simplificação teórica. Existem a esfera do direito, a constituição, as normas e as regras do jogo econômico em cada país. No plano internacional, as regras do Acordo de Bretton Woods, estabelecido em 1944, no final da Segunda Guerra Mundial, prevaleciam. Esse acordo determinava que os regimes cambiais dos países deveriam operar com taxas fixas, sem a liberalização dos fluxos de capital financeiro. Quando essas regras foram removidas, houve uma mudança radical, passando de um extremo de controle estatal para a liberalização e desregulamentação.
As economias não funcionam apenas com oferta e demanda; isso é uma simplificação teórica. Existem a esfera do direito, a constituição, as normas e as regras do jogo econômico em cada país.
Assim, as economias dos países desenvolvidos oscilaram de um extremo a outro, abrindo espaço, no plano político e ideológico, para uma onda neoliberal. Essa investida neoliberal foi clara, começando na década de 1980 com Margaret Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos, com o objetivo de recuperar a rentabilidade do capital perdido durante a crise do modelo pós-guerra, conhecido na literatura internacional como o modo de desenvolvimento fordista. O fordismo não se limitava ao paradigma tecnológico-industrial, como o taylorismo e a produção em série, mas também incluía uma dimensão macroeconômica menos perceptível para quem não estuda o período. Havia uma expansão e consolidação das estruturas de welfare state na Europa, que funcionou muito bem, elevando os níveis de vida.
Por trás dessa prosperidade, havia uma conexão entre salário e produtividade. A produtividade está relacionada à capacidade de oferta, e o salário, à demanda, pois as economias capitalistas funcionam com base em sociedades salariais. No Brasil, por exemplo, 70% da população economicamente ativa está na condição de empregados assalariados, com ou sem carteira, no setor público ou privado.
Portanto, a demanda de consumo de massa depende dos salários. Atualmente, há um agravante: o mascaramento da relação de emprego por meio da plataformização do trabalho, em que as empresas se recusam a reconhecer os trabalhadores como empregados, preferindo chamá-los de "colaboradores" ou MEI (Microempreendedor Individual). Isso é, na verdade, uma tentativa de evitar encargos trabalhistas e compromissos sociais que vigoravam no período pós-guerra.
O Brasil tentou copiar o modelo fordista, mas apenas em sua dimensão produtiva, não na relação capital-trabalho, que aqui sempre foi mais precária e flexível. As instituições de bem-estar social são muito restritas, e agora, em um contexto neoliberal, há uma tentativa de restringi-las ainda mais.
Voltando à questão dos fluxos de capital, durante o sistema monetário de Bretton Woods, não era possível haver liberalização financeira. Nada na economia acontece por acaso, como um fenômeno natural. São decisões tomadas por governos, que frequentemente agem em conformidade com os interesses dos grandes capitais financeiros, industriais e das grandes empresas. O capitalismo é uma sociedade hierarquizada, com bilionários, milionários, classe média e suas frações, baixa renda, pobres e miseráveis. As frações com maior capital financeiro e poder econômico têm maior influência política, pautando reformas no setor público, muitas vezes antissociais, como o congelamento do salário mínimo por seis anos, sugerido recentemente pelo ex-presidente do Banco Central. Se há congelamento para os trabalhadores, por que não congelar também a rentabilidade das carteiras dos rentistas? O capitalismo é hierarquizado: as elites se veem como donas dos países e das economias, enquanto a maioria da população é tratada como mão de obra barata para sustentar seus lucros.
A liberalização dos fluxos de capital nos anos 90 resultou em uma série de crises financeiras, como a do México em 1985, a da Ásia em 1997 e a do Brasil e Rússia em 1997-98. Essas crises não foram acidentais, mas sim consequência das demandas do grande capital financeiro, não do capital industrial ou produtivo. Assim, o processo de financeirização começou a se consolidar, dominando gradualmente a economia global. Os regimes de câmbio fixo foram desconstruídos, e a década de 90 foi marcada pelo slogan da globalização, vendida como uma era de vantagens irrecusáveis. No entanto, passada a euforia, ficou claro que a globalização era uma demanda do capital financeiro internacional e de grandes empresas, mesmo as não financeiras, que se beneficiaram da liberalização.
O capitalismo é hierarquizado: as elites se veem como donas dos países e das economias, enquanto a maioria da população é tratada como mão de obra barata para sustentar seus lucros.
O segundo ponto é que ninguém defendia o isolamento econômico, mas sim que as mudanças no padrão de comércio exterior e fluxo de capital fossem feitas dentro de uma estratégia nacional de desenvolvimento, como fizeram Japão, Tigres Asiáticos e China. A diferença é que esses países tiveram estratégias soberanas, enquanto o Brasil aderiu passivamente aos interesses do capital financeiro nacional e estrangeiro. O Estado brasileiro já estava fragilizado na crise dos anos 80, perdendo capacidade de impulsionar a economia, como fez durante o período desenvolvimentista de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e o regime militar. Embora o regime militar fosse antidemocrático, do ponto de vista econômico, acertou na acumulação de capital produtivo e industrial, desagradando os Estados Unidos, que não queriam o Brasil como potência na América do Sul.
No entanto, o regime errou na concentração de renda e na repressão sindical.
Nos anos 90, o Brasil abriu sua economia sem uma estratégia ou política industrial. Alguns economistas ortodoxos argumentam que o mercado era o melhor formulador de políticas industriais, o que é uma falácia. O setor privado não tem objetivos sociais ou de desenvolvimento ex-ante. Seu objetivo é o lucro, não a geração de empregos ou o pagamento de impostos. O Estado, por outro lado, deve ter objetivos sociais e estratégicos. No entanto, a ideologia neoliberal prega um Estado mínimo, reduzindo recursos para saúde, educação e previdência pública, forçando a população a recorrer ao setor privado. Isso cria nichos de mercado para o setor privado, mas a médio e longo prazo, é insustentável, pois as pessoas precisam de renda para consumir.
A socialização de custos por meio do bem-estar social gera externalidades positivas para a economia e melhora o ambiente de negócios, mas a ganância de curto prazo impede que isso seja visto como benéfico.
O Brasil está há mais de 40 anos estagnado na renda média, sem conseguir avançar para a alta renda. A desindustrialização avança, e mesmo o programa de reindustrialização do governo atual tem poucas chances de sucesso devido ao ambiente macroeconômico desfavorável, com taxas de juros elevadas. Concluímos que não temos um modelo de desenvolvimento autêntico, mas sim um modelo econômico que maximiza os lucros do setor financeiro e das elites rentistas, que se beneficiam dos juros altos.
Além disso, há uma plataforma de acumulação rentista-financeira e outra baseada na exportação de commodities, como soja e frango, que não são suficientes para desenvolver o país. A história mostra que os países que se desenvolveram como exportadores de commodities, como Austrália e Noruega, investiram parte dos lucros na industrialização local, algo que o Brasil não faz.
O setor privado não tem objetivos sociais ou de desenvolvimento ex-ante. Seu objetivo é o lucro, não a geração de empregos ou o pagamento de impostos.
A grande mídia, patrocinada pelo setor bancário-financeiro e pelo agronegócio, reproduz narrativas que beneficiam esses setores, ignorando os reais desafios do desenvolvimento. Os alunos de economia devem ter consciência disso, pois a economia é uma ciência interessada, que lida com dinheiro e poder. É fundamental estudar história econômica e desconstruir falácias, como a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo, que defende a especialização em produtos de baixa complexidade. Hoje, o Índice de Complexidade Econômica (ICE) refuta essa teoria, mostrando que os países se desenvolvem exportando produtos de alta tecnologia e complexidade. Um iPhone, por exemplo, agrega valor de cientistas, engenheiros e nanotecnologia, enquanto o minério de ferro tem baixa complexidade.
Os Estados Unidos, que já foram uma potência industrial, hoje estão desindustrializados, vivendo de serviços financeiros e tecnologia, mas dependendo da China para produção. O Chile, frequentemente citado como exemplo de sucesso neoliberal, é uma economia desindustrializada que vive de commodities como o cobre, com pobreza e sem uma base científica robusta. O agronegócio brasileiro, embora tecnificado, é apenas usuário de tecnologia, não produtor. A Embrapa, uma empresa pública, é uma exceção, pois inova e transmite conhecimento até para multinacionais.
A grande mídia, financiada pelo setor bancário e pelo agronegócio, legitima esse modelo econômico, ignorando seus problemas. As famílias mais pobres, sem acesso a informações alternativas, consomem apenas a narrativa dominante. O governo Lula, por exemplo, pratica políticas compensatórias, como o Bolsa Família, mas não enfrenta o cerne do problema: a financeirização da economia. O pagamento de juros da dívida pública supera R$800 bilhões, um valor ocultado pela mídia e pelos defensores do modelo atual.
O Brasil é visto como um grande mercado, não como um projeto de desenvolvimento inclusivo. A violência e a precarização são sintomas da falta de desenvolvimento. Em 1992, Celso Furtado publicou Brasil: A Construção Interrompida, destacando como o neoliberalismo mutilou as estruturas de bem-estar social, beneficiando apenas milionários e bilionários. As classes médias estão se proletarizando, e mais de 70 milhões de famílias estão superendividadas devido a juros excessivos no cartão de crédito.
A financeirização da economia brasileira beneficia apenas uma elite, enquanto o país regride. O setor bancário é um oligopólio, com mais de 82% do crédito concentrado nos cinco maiores bancos. A autonomia do Banco Central, aprovada recentemente, aprofunda esse problema, pois o torna independente do governo eleito, mas não dos interesses do setor financeiro. Milton Friedman, um neoliberal, criticava a independência do Banco Central por ser antidemocrática, mas essa visão é ignorada pelos economistas ortodoxos.